‘Quer andar de carro velho?”: No Brasil, para cada automóvel zero são vendidos cinco usados

No ano em que as montadoras iniciaram novos ciclos de investimentos, que ultrapassam R$ 115 bilhões, e a venda de automóveis zero quilômetro cresce forte, a revenda de veículos usados também está com o pé no acelerador. Esse mercado prevê fechar o ano com 15,5 milhões de unidades comercializadas até dezembro, um recorde histórico que representará alta de 7,5% em relação ao ano passado.

Segundo a Anfavea, associação que reúne as montadoras, para cada veículo zero que sai das concessionárias ao menos outros cinco usados são vendidos no país. Como mostrou O GLOBO, a venda de veículos novos teve seu melhor outubro em dez anos. Foram 264,9 mil carros, comerciais leves, caminhões e ônibus emplacados, alta de 21,6% frente ao mesmo mês do ano passado, e de 12,1% em relação a setembro. Naquele mês, foram vendidos 1,45 milhão de usados e, em novembro, 1,27 milhão.

Com renda em alta, as montadoras estão conseguindo esvaziar os pátios, mas nem todo mundo pode pagar por um carro zero. As revendedoras de usados ajudam a concretizar o sonho com preços mais baixos e facilidade de crédito. Agentes desse mercado apontam a insatisfação com o transporte público e o crescimento dos interessados em atuar como motoristas de aplicativos como outros fatores que explicam a maior procura por carros de segunda mão, particularmente os seminovos.

Na semana passada, Zaquel Andrade foi a uma loja de carros da Estrada Intendente Magalhães, polo popular de venda de seminovos na Zona Norte do Rio, trocar seu automóvel de seis anos por um de três para se manter na categoria atual do aplicativo pelo qual atua como motorista. Ele financiou um Ford Ka 2021 dando como entrada um modelo de 2018.

— No aplicativo o carro tem que ter no máximo seis anos de fabricação. Preferi comprar um usado mais novo, de 2021, que dá para eu trabalhar mais uns anos até juntar dinheiro e comprar outro — ele conta.

A busca por veículos de até três anos de uso, como o sedã de Zaquel, tem crescido mais que a média. Segundo a Federação dos Revendedores de Veículos (Fenauto), a venda desses seminovos subiu 15% até novembro, na comparação com os onze primeiros meses de 2023. O mercado como um todo cresceu 9,5%.

Mais aquecido que em 2021

A expectativa de vendas de usados até dezembro deve fazer 2024 superar os níveis de 2021, quando a falta de semicondutores atrasou a produção das montadoras no pós-pandemia e fez muita gente trocar concessionárias de carros novos pelos estabelecimentos de usados, que se valorizaram. Naquele ano, foram 15,1 milhões de transações.

A previsão de 15,5 milhões de usados vendidos neste ano supera em quase quatro vezes a produção estimada de novos, considerando além de carros leves, caminhões e motos. Segundo a Anfavea, a expectativa é que sejam fabricados 2,5 milhões de veículos no país em 2024. Serão 1,72 milhão de motocicletas, de acordo com a Abraciclo, que reúne as fabricantes do segmento.

— A indústria não consegue entregar o que o mercado pede e nem se ajustar à capacidade de renda ao brasileiro. O brasileiro migra para o seminovo porque o zero quilômetro está proibitivo — afirma Enilson Sales, presidente da Fenauto.

Um Renault Kwid 1.0 zero, um dos modelos mais baratos do país, não sai da concessionária por menos de R$ 67,7 mil. O preço salgado dos veículos novos, explica Sales, vem principalmente da adição de funções tecnológicas, como central multimídia, airbags laterais e vidros elétricos, que aumentam a margem de lucro das montadoras. Por outro lado, os modelos de entrada perdem a condição de “populares”, distanciando-se do consumidor de renda mais baixa. Sales lembra que os modelos mais básicos são fabricados sob encomenda só para as locadoras de veículos, que compram três de cada dez carros que saem das fábricas.

Para quem não pode pagar por um zero, a principal vantagem do seminovo é a possibilidade de ter um carro moderno com preço bem menor. Em geral, um automóvel zero perde 20% do valor no primeiro ano de uso e 10% nos seguintes. Mas o líder da Fenauto diz que a alta demanda por usados alterou essa dinâmica:

— A depreciação do seminovo caiu para 15% no primeiro ano e 7% nos seguintes.

Ainda assim há muitos negócios atraentes. Joacyr Magalhães, vendedor de carros há 35 anos na Intendente Magalhães, conta que alguns de seus clientes tinham dinheiro para comprar um popular zero mas preferiram um usado mais completo pelo mesmo preço.

HB20 é o mais procurado

Segundo o portal OLX, que faz a intermediação entre vendedores e compradores de seminovos na internet, o Hyundai HB20 é o carro mais buscado entre os usados de até três anos na categoria hatchback. Um exemplar zero do mesmo modelo básico sai das concessionárias, segundo a Fipe, por R$ 79.820. Um usado de 2021 custa, em média, R$ 57.908, cerca de 30% menos.

Márcio de Lima Leite, presidente da Anfavea, diz que o preço dos carros novos tende a se manter alto devido aos novos acessórios de segurança que se tornaram obrigatórios nos últimos anos, como os sistemas de controle de estabilidade. Mas, para ele, a indústria ganha com a venda de usados:

— O carro usado gera uma renovação natural (na frota). O motorista que tinha um carro de dez anos compra um de cinco; quem tinha o de cinco, compra um de três; e o que tinha um de três, compra um zero. É um ciclo positivo nas vendas que chega no carro zero.

Um fator decisivo para a venda de automóveis novos ou usados é o crédito, que está mais fácil mesmo com o atual ciclo de alta da taxa básica de juros (Selic) do Banco Central (BC). Com desemprego baixo, a previsão de crescimento da economia de mais de 3% neste ano e renda média no ponto mais alto em quatro anos, a inadimplência está em queda, o que tem facilitado a concessão desse tipo de financiamento nas instituições financeiras. O número de veículos usados financiados cresceu 20,7% nos onze primeiros meses deste ano na comparação com o mesmo período de 2023.

Risco mais baixo

Um fator que reduz o risco no caso dos veículos é que, geralmente, eles servem de garantia para o empréstimo. Dados do BC mostram que a inadimplência da carteira de crédito geral apresenta um nível de estabilidade no ano, em torno de 3,2%, abaixo do registrado na máxima do ano passado, quando superou os 3,5%. Segundo a B3, que opera o Sistema Nacional de Gravames (base que registra os veículos sob financiamento), a inadimplência acima de 90 dias no financiamento só de carros para pessoa física também vem caindo, de 5,3% em outubro de 2023 para 4,45% no deste ano.

— Os bancos acabam modelando as políticas de crédito em cima das curvas de inadimplência. Se caem, a disponibilidade de crédito sobe. E, nesse momento, a curva está descendendo — diz André Novais, diretor de Veículos da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi).

Segundo ele, a maior confiança do consumidor sobre sua estabilidade de renda e emprego também contribui para a decisão de compra de um veículo. Em novembro, o Índice de Confiança do Consumidor, da FGV, atingiu 95,6 pontos, o maior desde abril de 2014.

— O rendimento médio do brasileiro ainda é muito baixo para pagar prestações de mais de R$ 1 mil. Então, a confiança ajuda — observa.

Esse aquecimento, no entanto, tende a se reduzir no ano que vem com a perspectiva de o BC seguir aumentando os juros para conter a inflação.

*Estagiária sob supervisão de Danielle Nogueira

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