Série do GLOBO mostrou avanço do CV pelo coração da Amazônia, onde facções já atuam em um terço das cidades

Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Mãe Crioula, divulgado nesta quarta-feira, revelou que pouco mais de um terço da Amazônia Legal já tem a presença de facções criminosas ligadas ao narcotráfico — algumas delas locais, outras com origem no Sudeste do Brasil, como a fluminense Comando Vermelho (CV) e a paulista Primeiro Comando da Capital (PCC). Em setembro, no primeiro capítulo da série especial “O crime em campanha”, O GLOBO já havia mostrado o avanço do CV por Manaus, onde a disseminação do crime organizado interferia inclusive no pleito municipal. Relembre, abaixo, a reportagem.

Passava das 9h quando a caminhonete preta blindada virou a esquina da Rua Canela, no bairro Jorge Teixeira, Zona Leste de Manaus (AM). Após avançar pelo emaranhado de casas com tijolos aparentes, o carro parou ao final da via, e o candidato a prefeito Amom Mandel (Cidadania) desembarcou, acompanhado de uma pequena comitiva — um motorista, um cinegrafista e assessores. O objetivo da visita era gravar um programa eleitoral sobre um buraco de mais de um metro de profundidade na calçada: na peça, Mandel sairia da cratera, em referência ao personagem Super Mario, para denunciar “o descaso da prefeitura com a população local”. Em menos de cinco minutos, porém, a gravação foi interrompida por uma saraivada de fogos de artifício. Na sequência, um homem com um radiocomunicador na cintura se aproximou e chamou o próprio Amom: “Você não pode fazer campanha aqui, só o nosso candidato. Desliguem tudo e saiam. Agora”.

A presença ostensiva do crime organizado na capital amazonense também já constrangeu aquele que seria o alvo do esquete de Mandel. No fim de agosto, o prefeito David Almeida (Avante), candidato à reeleição, denunciou a uma emissora local que foi ameaçado por um traficante enquanto gravava para seu horário político no conjunto habitacional Viver Melhor, na Zona Norte — o maior empreendimento do programa “Minha Casa Minha Vida” no país, onde moram cerca de 55 mil pessoas. “Recebi um comunicado de que a pessoa que manda na área disse que ninguém faria campanha lá”, relatou o prefeito.

Em Manaus, a campanha é um campo minado: cada lugar tem um dono, que determina quem pode ou não falar com o eleitor

— Amom Mandel, durante uma caminhada acompanhada pelo GLOBO

Minutos depois da conversa do candidato com a reportagem, no início de setembro, o grupo teve de deixar a comunidade União da Vitória, na Zona Oeste, a mando de traficantes, incomodados com a presença de policiais entre os seguranças do candidato. Os muros da favela são repletos de pichações do Comando Vermelho (CV), facção fluminense hegemônica na cidade.

O GLOBO ouviu relatos sobre a interferência do tráfico na campanha em Manaus de sete candidatos a prefeito e a vereador, por seis partidos diferentes — da esquerda à direita. No primeiro capítulo de uma série especial sobre os impactos da atuação do crime organizado nas disputas eleitorais, que começa a ser publicada neste domingo, o GLOBO mostra como facções alimentam o crescimento urbano desenfreado no coração da Amazônia, avançando inclusive sobre a floresta, em um fenômeno que restringe a escolha do eleitor e coloca a democracia sob ameaça no maior município do Norte do Brasil. Elaboradas a partir de 30 entrevistas com políticos, cabos eleitorais, líderes comunitários, policiais, promotores e especialistas, e da análise de duas mil páginas de documentos como processos e inquéritos, as reportagens destrincharão como traficantes, milicianos e grupos de extermínio cerceiam as eleições de modo distinto pelas cinco regiões do país.

Exigência de pedágio e veto a publicidade nas redes

Entreposto de uma das principais rotas do tráfico de drogas do país, Manaus assistiu, na última década, à expansão das facções por sua malha urbana — e, simultaneamente, virou terreno fértil para a infiltração do crime organizado no processo eleitoral. Na Zona Leste, traficantes anunciam acordos com candidatos em troca de obras públicas, como o asfaltamento de vias, e vetam a presença de outros postulantes. Em outras regiões, políticos são obrigados a pagar “pedágios” em dinheiro ou cestas básicas para fazer campanha. O tráfico também impõe seu próprio código eleitoral nas periferias e proíbe moradores de comparecer a eventos políticos ou usar material de campanha e até de declarar voto nas redes em nomes não chancelados.

As restrições impostas pelo tráfico começaram antes mesmo do início do período eleitoral. Um ativista pela causa da moradia, sob anonimato por temer represálias, conta que ainda era pré-candidato a vereador quando foi expulso por traficantes da comunidade do Coliseu, na Zona Leste, em 25 de maio. A favela surgiu há cerca de dez anos da ocupação irregular de um terreno destinado à ampliação do Polo Industrial de Manaus e abriga hoje 20 mil famílias — boa parte ainda sem acesso a esgoto, luz ou água potável. Nem viaturas circulam regularmente pelo Coliseu: a polícia só entra na região, dominada pelo CV, em ações pontuais e com o apoio de unidades especializadas.

Na ocasião, o político foi até um ponto alto da comunidade para fiscalizar, com um drone, o andamento das iniciativas de regularização fundiária tocadas pela prefeitura. Logo após ligar o equipamento, uma caminhonete preta encostou, e três homens desceram.

Um deles mandou eu baixar o drone e disse que não era mais recomendado que eu voltasse. No início, não entendi o que estava acontecendo, porque todos me conheciam, eu já realizava trabalho comunitário ali. Ele explicou: “Já fechamos com um candidato para este ano”. Não retornei mais.

— Pré-candidato expulso do Coliseu, na Zona Leste de Manaus

No mesmo dia, um áudio viralizou entre moradores da favela. “Vou deixar um esclarecimento para as pessoas que estão trazendo candidatos para dentro da comunidade. Podem dar varada! As pessoas que querem atrapalhar o trabalho que eu estou fazendo dentro da comunidade não vão se dar bem. Já temos o nosso candidato”, diz um homem, ainda não identificado pela polícia, na gravação.

Denúncias semelhantes se repetiram ao longo da campanha. Três candidatos diferentes contaram que, no fim de julho, precisaram retirar adesivos de vans que buscam cabos eleitorais nas periferias. A medida foi tomada a pedido dos funcionários, que vinham sendo ameaçados nos bairros onde moravam. Uma militante que atua no Japiim, na Zona Sul, relatou que, ao longo de setembro, traficantes passaram a abordar os idosos em casa e mandar que apagassem das redes sociais fotos com referência a candidatos que não aceitaram acordos para fazer campanha na região.

Fim de pacto e disputa por rota

A crise de violência urbana em Manaus veio a reboque de mudanças na cena criminal brasileira. Em 2016, as duas maiores facções do país — o CV e o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo — romperam um pacto de não agressão de 30 anos e entraram em guerra pelas rotas de escoamento de drogas.

Em meio à disputa, os paulistas bloquearam o acesso dos rivais à chamada Rota Caipira, principal via de chegada ao Sudeste do entorpecente vindo do Paraguai. O CV, que até então não tinha atuação expressiva fora do Rio, se viu obrigado a buscar novos corredores para transportar drogas e armas. Devido à proximidade com países produtores de cocaína, como Colômbia e Peru, da miríade de rios navegáveis e da fiscalização deficiente, o Norte do país passou a ser considerado estratégico pela quadrilha.

De dentro de penitenciárias federais, a cúpula do CV fechou parceria com a Família do Norte (FDN), principal facção do Amazonas à época, conseguindo acesso à Rota do Solimões, curso d’água que vai de Manaus até a tríplice fonteira. Com a chegada dos cariocas, o trajeto aquaviário ganhou protagonismo no tráfico internacional e virou um dos principais corredores de droga do país. A cocaína entra no país pelo rio e é transportada de barco até a capital do estado, alçada a entreposto logístico de onde as cargas seguem viagem pelo Brasil e para o exterior. Com o passar dos anos, o CV consolidou seus tentáculos na região e, valendo-se de rachas internos na FDN, acabou por absorver quase todo o grupo.

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Hoje, enquanto a facção amazonense praticamente sumiu, a quadrilha do Rio tornou-se hegemônica, em um predomínio que se expande pela região Norte. Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de novembro de 2023, mostra que um a cada quatro municípios da Amazônia Legal sofre com a ação do PCC ou do CV, que controla ou tem presença maciça em mais de 120 cidades da região.

Atualmente, mais de 80% das favelas e invasões de Manaus são dominadas pela facção do Rio, que mudou até a paisagem da cidade — pichações com as iniciais do grupo pululam aos montes por diversos bairros, inclusive no Centro Histórico. Espraiado pelo território, o bando vale-se do período eleitoral para ampliar ainda mais sua influência: todos os locais citados na reportagem são redutos do CV.

— Na última década, o panorama da cena criminal de Manaus mudou muito. Houve aumento exponencial na circulação de fuzis nas ruas e expansão das áreas dominadas pelo tráfico. Hoje, barricadas fazem parte do cotidiano do morador, bem como blitzes do crime. Todos os bairros, inclusive os mais ricos, têm zonas vermelhas. Esse agravamento, obviamente, tem efeitos sobre o processo eleitoral e sobre a circulação de candidatos — reconhece o promotor Igor Starling, coordenador do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Amazonas (MPAM).

“Preciso de um ‘faz me rir’”

Diálogos obtidos pela Secretaria estadual de Segurança no celular de um chefe do tráfico, em 2020, escancaram como funcionam as negociações entre traficantes e candidatos na campanha. Na ocasião, Lenon Oliveira do Carmo, o Bileno, apontado à época como número dois da hierarquia do CV no Amazonas, foi capturado no Ceará e teve seu aparelho apreendido. “Os candidatos ficaram de cavar os poços na quarta-feira, dar os 500 canos e asfaltar as duas principais do Coração de Mãe e Francisca Mendes. Depois, quando ele ganhar, vai asfaltar o resto”, disse Bileno, em áudio enviado a um comparsa em 28 de setembro daquele ano, revela o relatório da Secretaria Executiva Adjunta de Inteligência.

Após enumerar condições para apoiar o candidato, o traficante explicou ter sete favelas com cerca de 30 mil eleitores sob seu controle na Zona Leste. Por fim, estipulou um valor para o acordo: “Preciso de um ‘faz me rir’, pede para eles adiantarem 40 (mil reais)”. Bileno prometia ainda que, com o negócio fechado, organizaria caminhadas e carreatas nas comunidades. O traficante ganhou liberdade meses depois e, em julho de 2022, morreu em confronto com a PM em Manaus. Como o relatório foi produzido sem que a Justiça tivesse decretado a quebra de sigilo do celular, nenhum inquérito foi aberto para investigar o acordo.

As denúncias de influência do tráfico na campanha estão intimamente ligadas ao crescimento urbano desordenado de Manaus e à entrada das facções no negócio da grilagem de terras. Tanto as favelas citadas por Bileno na conversa interceptada quanto o Coliseu, de onde o ativista e pré-candidato a vereador foi expulso, nasceram da ocupação ilegal de terrenos públicos — vários deles em zonas de preservação ambiental. As áreas invadidas se espalham por toda a cidade e aumentam ano a ano: em 2023, segundo a Defensoria Pública, havia 68 ocupações irregulares em Manaus, 54% a mais do que no ano anterior.

Em 2021, um estudo do MapBiomas, feito com base em imagens de satélite, mostrou que Manaus foi a capital brasileira com maior crescimento de áreas ocupadas por favelas em quase quatro décadas — um território equivalente a 10 mil campos de futebol. A pesquisa também apontou que, atualmente, 47% do território da cidade são compostos por comunidades que surgiram e cresceram sem planejamento. Se as invasões avançam, a floresta míngua: em 10 anos, Manaus perdeu 29 km² de mata nativa, atesta o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

O avanço das ocupações ilegais, segundo investigações da polícia e do MPAM, é fomentado pelo crime. Os traficantes planejam invasões, repartem a área em lotes e vendem. Em seguida, os bandidos estipulam taxas para instalação de gatos de luz e internet clandestina nas casas. Por fim, os novos territórios anexados são usados pelas facções como moeda de troca em negociações com políticos em busca de votos.

— A terra é um ponto de atenção em Manaus. Há o problema social do déficit de moradia, terrenos que são áreas de proteção ambiental desmatados e a ação das facções, que lucram com a grilagem, a venda ilegal de lotes e a ampliação de áreas sob seu domínio — detalha o promotor Igor Starling.

Procurados, o Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM) e a Polícia Federal não se manifestaram sobre as denúncias de influência do tráfico no processo eleitoral.

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