‘A Igreja Negra’, de Du Bois, estabeleceu marco nos estudos da religião
A publicação em português de “A Igreja Negra”, de W.E.B. Du Bois, é um acontecimento. Que os méritos sejam conferidos ao professor Matheus Gato, da Unicamp, que coordenou o projeto. Já tinha passado da hora do reconhecimento da trajetória intelectual de Du Bois por parte das ciências sociais brasileiras.
Du Bois foi a primeira pessoa negra a receber o título de doutor pela Universidade Harvard, fundou o laboratório de sociologia da Universidade de Atlanta e contribuiu ativamente com movimentos políticos de luta pelos direitos civis ao longo de sua extensa vida.
Embora sua trajetória pessoal e condição de intelectual negro em um país tão segregado como os Estados Unidos do final do século 19 sejam dignas de nota, isso não deve eclipsar a amplitude, vigor e contribuição de sua obra para a sociologia em geral.
Devemos evitar o erro de apresentar Du Bois como “apenas” um intelectual negro, como destacou Silvio Almeida no prefácio que escreveu em outro livro de Du Bois lançado em português, “As Almas do Povo Negro”.
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A publicação de “A Igreja Negra” pela editora Recriar contribui para o reconhecimento deste autor como um cânone das ciências sociais e viabiliza o acesso à leitura por todos os interessados. O livro é resultado de uma investigação abrangente, realizada por um extenso grupo de pesquisadores sob coordenação de Du Bois, mas cujo relatório foi escrito majoritariamente por ele.
Para o sociólogo, esse projeto estava inscrito em uma agenda de pesquisa mais ampla, interessada em analisar os chamados “problemas negros”, entendidos como problemas imputados aos negros, para a partir daí refletir sobre dimensões estruturantes das relações sociais.
Originalmente publicado em 1903, “A Igreja Negra” ocupa um lugar singular na sociologia da religião. Quando comparado à maior parte das produções consideradas canônicas deste campo, de sociólogos europeus como Max Weber, Émile Durkheim e Georg Simmel ou outros americanos como William James, o livro de Du Bois é de destacada singularidade.
Isso porque “A Igreja Negra” é resultado de uma pesquisa empírica, que mobilizou metodologias diversas, tais como “surveys”, entrevistas, dados censitários, fontes históricas e trabalho de campo. Não se trata, portanto, de reflexões de cunho filosófico ou meramente teóricas.
O que está em jogo neste trabalho de Du Bois é um duplo esforço analítico. Em primeiro lugar, é um dos primeiros livros que tomam o fenômeno religioso como um objeto de interesse empírico da sociologia. Isso é, o autor inscreve a religião no horizonte de interesse da sociologia e pensa sobre seu papel na sociabilidade de comunidades negras.
Em segundo lugar, a própria pesquisa ajudou a estabelecer os parâmetros de uma sociologia empírica da religião. Apesar desses méritos, o livro era praticamente ignorado nos cursos de sociologia da religião, até esta publicação em português.
Ler “A Igreja Negra” é um exercício intelectual instigante diante da transformação da paisagem religiosa no Brasil. Recentemente, em pesquisa realizada pelo Datafolha sobre evangélicos e política, elaborada com minha contribuição e também de Juliano Spyer, Christina Vital e Vinicius do Valle, mais uma vez ficou demonstrada a predominância de pessoas negras no universo evangélico brasileiro.
Esse dado lembra o quanto as relações religiosas, assim como todas as outras, estão atravessadas por questões raciais. A leitura de “A Igreja Negra” mostra que a discussão sobre raça e religião não é novidade na sociologia da área , mas, pelo contrário, foi um dos seus temas fundadores.
A Igreja Negra
Preço R$ 99,90 (392 págs.)
Autoria W.E.B. Du Bois
Editora Recriar
Tradução Isaac Palma Brandão, Stefania Pereira da Silva, Damien Browne
Organização Matheus Gato