Três cidades de SC estão entre as 50 com mais casos de estupro no Brasil
Um estupro a cada seis minutos. Ou seja, dez casos registrados por hora no Brasil. Esta conta se baseia nos 83.988 estupros relatados em 2023, segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgado em julho último, ante 78.887 no ano anterior, quando a taxa do crime por 100 mil habitantes saltou 6,5%, de 38,8 para 41,4. Três de quatro casos, em torno de 76,48%, correspondem a estupros de vulneráveis – quando as vítimas têm menos de 14 anos ou são incapazes de consentir (o que inclui pessoas com deficiência intelectual).
Em Santa Catarina, segundo a Gerência de Estatística e Análise Criminal da Secretaria de Estado da Segurança Pública, foram 4.460 casos de estupro em 2023 – 3.050 vítimas vulneráveis e 1.410 da faixa considerada não vulnerável.
Três cidades catarinenses constam na lista das 50 brasileiras com mais casos de estupro do anuário. Chapecó figura em 12º lugar, Camboriú em 19º e Itajaí em 30º.
Os estupros, assim como todas as modalidades de violência contra a mulher cresceram em 2023. Especialistas apontam que, em parte, a alta se dá pela tipificação recente – como importunação sexual e stalking (perseguição), além de campanhas para tentar baixar a subnotificação histórica para crimes dessa natureza.
O anuário é um dos três mais importantes levantamentos nacionais em relação à violência em todos os níveis. Os números entre eles divergem, embora todos tenham como objetivo dar a real dimensão e comprovem a escalada da violência em todos os níveis no país.
O Mapa da Segurança Pública, divulgado pelo MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública) em março deste ano, com base em números repassados pelos Estados, por exemplo, marca 2023 como o de maior registro de casos de estupro dos últimos três anos, totalizando 80.757 vítimas no país e uma taxa de 39,77 por 100 mil habitantes, um aumento de 1,54% em relação ao ano anterior, em que foram registrados, pelo Mapa, 79.532 estupros.
Já o Raseam (Relatório Anual Socioeconômico da Mulher), lançado em abril último, em Brasília, pelo Ministério das Mulheres, por exemplo, depois de quatro anos sem estatísticas, apontava 67.626 estupros em mulheres no país em 2022.
A média geral catarinense segue a nacional em relação aos estupros que ocorrem em via pública. Foi neste cenário, que atinge em torno de 12,9% das vítimas, que uma mulher de 29 anos que percorria a avenida Beira-Mar Norte, na Capital, na noite de 25 de março deste ano, cruzou seu caminho com o do foragido do sistema prisional catarinense Bruno Alves Fernandes Ribeiro, 28 anos. O crime ocorreu por volta das 22h, na avenida da Saudade, perto do CIC (Centro Integrado de Cultura).
Inicialmente, o agressor foi apontado como um foragido que teria se beneficiado da saída temporária, mas a repórter Kelly Borges, da NDTV, que esteve na região do crime no dia seguinte, apurou que Bruno fugiu depois de ter obtido o benefício de sair para trabalhar dias depois de retornar de uma saidinha.
Ele era um preso com bom comportamento, que tinha lido sete livros de grandes autores brasileiros, como Machado de Assis e Clarice Lispector. Por isso, inicialmente teve direito à saída temporária. Retornou dia 13 de março deste ano, depois de uma semana de saidinha, mas logo conquistou outro direito – o de sair para trabalhar na limpeza pública. Porém, no dia 17, não retornou e passou a ser considerado foragido.
Bruno passou a viver na rua. E bastaram oito dias para que tratasse de aumentar sua ficha criminal. Foi vivendo ali, entre os bairros Centro, Agronômica e Itacorubi, a poucos metros da carceragem para onde deveria ter voltado, onde cometeu o crime contra a jovem profissional que voltava do trabalho por volta das 22h.
Passados mais de quatro meses da ocorrência, a vítima, agora com 30 anos, tenta superar o trauma. Ela revela que ainda não se sente confortável para falar sobre o crime, e por isso prefere manter-se no anonimato. Segundo o depoimento que deu à Polícia Civil quando reportou o crime, assim que percebeu que um homem a seguia, acelerou o passo. Mas ele veio por trás, a agarrou pelo pescoço, agredindo-a no rosto e arrastando-a para a vegetação, onde cometeu o estupro.
Chamada, a Polícia Militar passou a procurá-lo com apoio das equipes que monitoram as câmeras das ruas da região. O criminoso foi perseguido e preso cerca de uma hora depois. Ele correu cerca de dois quilômetros, quando foi flagrado pelas câmeras de um condomínio pulando o portão de cerca de três metros de altura de um residencial na rua Frei Caneca, às 22h47. Foi visto no bicicletário e tentou se esconder debaixo de um carro.
Segundo o tenente-coronel André Rodrigo Serafin, comandante do 4º Batalhão da PM, além do estupro o criminoso também roubou o celular da vítima. Com a PM em seu encalço, ele pulou para o prédio vizinho, mas o cerco se fechou às 22h59. E às 23h07 foi realizada a prisão do até então suspeito, logo identificado como Bruno, um jovem que é velho conhecido da polícia.
Enquanto a mulher passava a integrar as listas de vítimas de estupro no país, Bruno ampliava sua extensa ficha criminal. E quando se fala em extensa não é exagero. Ele começou no crime ainda na adolescência – tanto que era conhecido pela alcunha de Menor – e somava no momento de sua prisão, em março, nada menos do que 52 crimes, incluindo estupro, tráfico de drogas, roubo, lesão corporal dolosa, dano, tentativa de furto, dano contra o patrimônio público, ameaça, receptação, perturbação do sossego, furto em residência, corrupção de menores e furto de automóvel.
Nascido em Florianópolis, com pai e mãe registrados na certidão de nascimento, Bruno se criou pela região. Seu último endereço conhecido, em 2018, era no Morro das Três Voltas, em Santo Amaro da Imperatriz. Porém, sua atuação no crime se estendeu para outras regiões do Estado, tanto que há processos contra ele em Santo Amaro, Joaçaba e Concórdia.
Em Concórdia, aos 18 anos, foi preso no dia 7 de fevereiro de 2014, depois de série de furtos praticados após ter deixado a casa de semiliberdade, onde havia cumprido medidas socioeducativas. De volta a Florianópolis, morava a maior parte do tempo nas ruas, praticando crimes.
Em 11 de maio de 2017, então com seis autos de prisão, foi detido sob suspeita de roubar a carteira e o celular do motociclista André Pereira Chaves, que morreu em acidente no túnel Antonieta de Barros. Embora quando detido dias depois estivesse com a carteira e um cartão bancário de André, tentou jogar a culpa em outro morador de rua, mas acabou confessando e foi levado à DP do Saco dos Limões. Como a prisão não foi em flagrante, foi solto horas depois. Viciado em crack, revelou ter trocado o celular da vítima e gasto os cerca de R$ 300 que havia na carteira com drogas.
Quando se observa a longa ficha criminal de Bruno Alves Fernandes Ribeiro, se questiona como alguém com seu histórico criminal seja colocado em liberdade com tanta facilidade. O trabalho externo para detentos é previsto no artigo 36 da Lei de Execução Penal, considerado admissível para presos em regime fechado em obras públicas realizadas por órgãos da administração direta ou indireta. Em Santa Catarina, recentemente o governador Jorginho Mello exaltou o trabalho dos presidiários na internet.
A saída para trabalho é diferente das saidinhas temporárias, que existem desde 1984, quando a Lei de Execução Penal entrou em vigor. E há requisitos a serem cumpridos, como o detento ter bom comportamento, ter cumprido um sexto da pena, se o condenado for primário, e um quarto, se reincidente. A medida que suspende o benefício vale apenas para os novos sentenciados. Os condenados antes de maio continuam com direito a desfrutá-la.
Com o aumento de crimes praticados por presidiários durante as saídas, o debate sobre a manutenção ou não do benefício se tornou pauta do Congresso Nacional, onde tramitava desde 2022. O Congresso decidiu em 28 de maio acabar com as saídas temporárias para visitar a família. Essas possibilidades de saídas em feriados e datas comemorativas haviam sido restauradas na Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 1984) por um veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em abril, e derrubado em maio. Agora, os trechos que haviam sido vetados fazem parte da Lei 14.843, de 2024, que trata da saída temporária.
A lei tem origem no PL 2.253/2022, aprovado pelo Senado em fevereiro. O governo federal defendeu que a proibição era inconstitucional por afrontar a família e o dever do Estado de protegê-la. Mas o texto aprovado no Congresso define que o benefício será concedido apenas aos detentos em regime semiaberto que cursam supletivo profissionalizante, ensino médio ou superior.
Até o autor do projeto, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) defendia texto que não acabava totalmente com as saídas, apenas impunha restrições. Ele acredita que o fim das saídas vai congestionar o Judiciário e não vai acabar com o problema da criminalidade no país. “Em São Paulo, por exemplo, a saída de Natal em 2023 beneficiou 34 mil presos com saída temporária. Desses, 1.700 não retornaram no prazo. Muitos voltaram depois, mas só 81 cometeram delito, ou seja, 0,23% deles”, argumentou.
As discussões pró e contra as saídas temporárias ganharam força na internet. De um lado, os defensores do fim das saídas lembram que parte dos presos colocados em liberdade cometem novos crimes. Um destes casos ocorreu há um ano, em agosto passado, quando uma quadrilha de assaltantes aproveitou a saída do Dia dos Pais para atacar uma agência do Sicoob, em Biguaçu. Apesar de terem espalhado pânico e feito reféns, o assalto foi malsucedido. Em confronto com a polícia, um dos assaltantes foi morto e os demais voltaram à prisão.
Fuga na saída temporária por si só não é crime, mas falta grave. Ela pode levar o preso a perder os dias que trabalhou ou estudou para descontar no cumprimento da pena e não mais usufruir deste benefício. Mas são justamente os crimes praticados nesta evasão ou por apenados em condicional que usam tornozeleira eletrônica que colocam em xeque o sistema.
Apesar das estatísticas mostrarem que a via pública não é o local dominante para crimes de estupro, a ousadia dos criminosos não os impede. Em Jaraguá do Sul, no dia 19 de fevereiro deste ano, uma mulher de 33 anos sofreu estupro e tentativa de homicídio quando caminhava na rua entre o Centro e o bairro Água Verde.
O criminoso, de 21 anos, foi preso um dia depois. Ele usava tornozeleira eletrônica. Quando percebeu que estava sendo seguida, a vítima avisou o marido, mas ele não conseguiu chegar a tempo. O criminoso a levou para um lugar ermo, a atacou com socos e pedradas, a esfaqueou nas costas e a violentou. Após o ataque, a jogou de uma ponte. Foi o marido quem a resgatou e a levou para o hospital. Muito machucada, ela precisou passar por cirurgias. Indiciado por tentativa de homicídio qualificado e estupro, o suspeito foi levado para o Presídio Regional de Jaraguá do Sul. Dias antes, ele havia cometido furtos em Guaramirim.
Na manhã de 2 de maio deste ano, outro crime semelhante foi registrado em São Miguel do Oeste, no Extremo-Oeste. Uma mulher de 42 anos relatou ter sido arrastada para um matagal e estuprada por dois homens.
O acusado pelo estupro de uma jovem de 20 anos, em 9 de janeiro de 2023, em Joinville, foi condenado pela Justiça no dia 5 de julho do mesmo ano. A condenação foi anunciada pela própria vítima, que havia relatado o caso na internet. “O sentimento que sinto hoje é indescritível e imensurável. É luta por mim e por todas”, escreveu.
O crime ocorreu na região central, na avenida Hermann August Lepper, paralela à Beira-Rio, uma das mais movimentadas da cidade. “Eu estava andando normalmente, não é um caminho que faço todos os dias, mas sempre andei na rua sozinha e nunca tive problema. Quando saí da prefeitura senti algo estranho, mas continuei caminhando. Percebi que ele me seguia, apertei o passo, mas ele me alcançou e segurou”, contou a vítima.
Após rendê-la, ele mandou que não esboçasse reação. “Eu falei que poderia levar tudo, mas que não me machucasse. E não gritei, porque falou que me mataria”, contou. Depois do crime, ela se abrigou na guarita de uma empresa e foi amparada por uma amiga, que iria encontrar.
Seis meses depois, o acusado foi condenado à prisão, em regime inicial fechado, com base no artigo 213 do Código Penal, que prevê pena de seis a dez anos de reclusão pelo crime de estupro.
Depois de compartilhar seu drama e estimular mulheres de todo o país a denunciar os abusos, hoje a influenciadora não quer mais falar. Ela obteve apoio e admiração de milhares de mulheres, mas também sofreu com ataques de ódio na internet, que a fizeram recuar.
Explicar o crescimento da violência sexual no Brasil não é tarefa fácil, porque a subnotificação é regra nestes casos e está longe de ser apenas no Brasil, constata o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023. Os dados divulgados revelam cenário devastador, com o maior número de registros de estupro e estupro de vulnerável da história. Porém, como correspondem aos casos que foram notificados às autoridades policiais, é consenso de que representam apenas uma fração da violência.
Estudo de pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indica que apenas 8,5% dos estupros no Brasil são reportados às polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde. Assim, os casos no Brasil superariam os 822 mil casos anuais.
A psicóloga clínica e social Giselle Maestri, graduada pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), com formação em terapia relacional ou sistêmica e especialização multiprofissional em saúde da família, analisa que não existe teoria única que explique de forma conclusiva a motivação para o estupro.
Para a profissional, que atua com psicoterapia de reprocessamento cerebral, conhecida como EMDR, sigla para a expressão em inglês Eye Movement Desensitization and Reprocessing – Dessensibilização e Reprocessamento por meio de Movimentos Oculares – e integra a Associação Brasileira de EMDR, os motivos que levam aos crimes de violência sexual podem ser multifatoriais, como raiva do sexo feminino, desejo de poder, sadismo, compulsão ou gratificação sexual. Ela também atua no Creas (Centro de Referência da Assistência Social) e no Paefi (Serviço de Orientação e Apoio à Família e Indivíduos) da Prefeitura de Florianópolis.
As teses mais aceitas para desvendar a mente destes homens se embasam no fato de que violência é um fenômeno histórico e estrutural que se faz presente na constituição da sociedade. “É um fenômeno presente em todas as classes sociais, entretanto, grupos mais vulneráveis tornam-se mais suscetíveis à incidência dele”, frisa.
Embora em alguns casos os transtornos psicóticos sejam citados como aumento do comportamento violento, e Giselle lembra que existem evidências robustas de diferentes países indicando este risco, a visão de especialistas é que os transtornos mentais graves têm pequeno papel no crime sexual. “A doença mental não está incluída entre os fatores de risco para o cometimento de estupro ou abuso sexual”, cita.
Estudiosos deste tema consideram como fatores de risco para a perpetração de crimes sexuais aspectos do desenvolvimento (como abuso sexual na infância) e vulnerabilidade pessoal (especialmente fantasias sexuais desviantes ou motivadas por abuso de substâncias). Ainda, foi encontrado que história de abuso sexual na infância indica um risco cinco vezes maior de o indivíduo cometer crime sexual.
Fatores históricos, como precária ligação com os pais, problemas escolares adversos e violência intrafamiliar aliados com a ausência de suportes sociais positivos influenciam no comportamento de raiva e agressão, mas não são determinantes.
A ciência agrupa os estupradores em categorias. Confira as principais
Os dominadores
Querem demonstrar virilidade e superioridade. Enxergam a mulher como uma figura submissa, com serventia exclusiva para o ato sexual predatório.
Os românticos
Têm como característica o hábito de procurar as mesmas vítimas. Os casos investigados levam a crer que geralmente são homens solteiros, de poucos amigos, e que procuram dar ao crime a característica de um encontro.
Os vingadores
Têm por principal objetivo machucar a vítima. É um homem que sofreu, ou pelo menos imagina ter sofrido injustiça de uma mulher.
Os sádicos
Têm potencial para se tornar um serial killer. Em geral, sabem escapar da polícia e dificilmente tem antecedentes criminais. Alguns apresentam transtornos psiquiátricos (psicopatas), planejam o crime com cautela e erotizam a violência.
O oportunista
A motivação inicial não era estuprar. Acontece em casos de assalto a residências. O objetivo era apenas se apropriar de objetos de valor, mas o criminoso enxerga na situação indefesa da mulher a oportunidade para o abuso.
Para a psicóloga Giselle, a violência é um problema de saúde pública. Lembra que o problema histórico vem da necessidade de investir na educação de base e no atendimento de saúde mental para as famílias vítimas de violação de direitos, visando a interrupção do ciclo de violência.
“Precisamos, ainda, trabalhar com a questão dos direitos humanos e dos direitos das mulheres. Lembrando que os meios de comunicação e redes sociais têm grande responsabilidade ao reproduzir estereótipos que reforçam a ideia do corpo da mulher como objeto à disposição dos homens”.