Negacionismo fóssil

Quando o governo brasileiro se apresenta como uma liderança na política climática global e assume a presidência do G20 com o lema “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”, os subsídios aos combustíveis fósseis aparecem como uma verdade inconveniente.

De fato, o tema tem sido objeto de atenção do G20 desde 2009, numa época em que ficou combinado que os países atuariam em cooperação para racionalizar e eliminar gradualmente os subsídios aos fósseis. Mas essa agenda andou pouco. Pressionada pela força econômica e política do setor de óleo e gás, o tema também perdeu força pela sensibilidade econômica e política associada à elevação do preço interno dos combustíveis. O fracasso da agenda está estampado em números: em 2022, pela primeira vez, subsídios e investimentos aos fósseis concedidos pelos países do G20 ultrapassaram a marca de US$ 1 trilhão, segundo dados do Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (IISD).

Na Organização das Nações Unidas (ONU), relatório após relatório, é reforçada a urgência de se frear a expansão da produção de fósseis. Segundo o último documento, sobre a Lacuna de Emissões 2023, o carvão, o petróleo e o gás extraídos ao longo da vida útil das minas e dos campos ativos, e dos que estão planejados para entrar em produção, emitirão mais de 3,5 vezes o montante de carbono disponível para limitar o aquecimento global a 1,5°C e quase todo o montante disponível para o limite de 2°C.

Nos últimos anos, o Brasil se furtou do debate internacional ao abraçar o negacionismo, ignorando as mudanças climáticas provocadas pela ação humana predatória e os acordos internacionais que pretendiam mitigar o problema, como o Acordo de Paris.

Ao retomar a presença e a liderança em espaços de governança global, não é mais possível admitir o negacionismo fóssil no discurso e no planejamento do governo brasileiro. O país, que é o nono maior produtor mundial de petróleo, precisa assumir seu papel no problema global dos subsídios que sustentam, às custas de perdas fiscais bilionárias, a lucratividade que impulsiona a expansão da produção global de fósseis.

Os números recém-divulgados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostram o tamanho do problema. Entre 2018 e 2022, foram concedidos R$ 246 bilhões em subsídios aos fósseis no Brasil, dos quais 83% se deram por meio de renúncias fiscais. Do valor total em renúncias, a exploração de óleo e gás recebeu 70%, ou R$ 194,4 bilhões, por meio dos regimes especiais de tributação que beneficiam o setor. O Repetro representou, sozinho, R$ 159 bilhões em renúncia no período.

Adicionalmente, do ponto de vista doméstico, a reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis contribuiria para a revisão da pesada estrutura de renúncias que permeia o emaranhado tributário brasileiro e para ampliar receitas tributárias cada vez mais necessárias no enfrentamento a consequências do aquecimento global e seus efeitos mais intensos sobre a população mais pobre.

Sabemos que o problema das emissões associadas aos fósseis é global, complexo e profundamente associado a um padrão de consumo desigualmente distribuído. Também sabemos que o Brasil tem uma matriz energética 47,4% renovável, em comparação à média mundial de 14,1%, mas todos os argumentos reais e verdadeiros não podem mascarar a necessária e urgente avaliação e reforma dos subsídios aos fósseis.

A ação do governo rumo à reforma dos subsídios aos fósseis juntamente à conquista do desmatamento zero seriam as mais valiosas âncoras políticas para uma efetiva liderança global incontestável contra as mudanças climáticas. O desafio é ainda maior frente ao anúncio da entrada do Brasil na Opep+ , com a promessa de atuar para “convencer os países que produzem petróleo de que eles precisam se preparar para reduzirem os combustíveis fósseis”.

*Alessandra Cardoso e Cássio Carvalho são assessores políticos do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

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