O que é ‘crawling peg’, a política cambial de Javier Milei que criou um dilema na Argentina

A Argentina do presidente Javier Milei vive o que muitos chamam de “dilema do dólar”. Depois de ter implementado uma forte desvalorização do peso quando assumiu o poder, em dezembro de 2023, Milei optou por leves ajustes mensais — em torno de 2% — na cotação oficial da moeda americana.

É uma estratégia, conhecida no jargão do mercado financeiro, de crawling peg — um regime cambial com ajustes controlados e graduais na taxa.

O tratamento de choque inicial, e que fora prometido durante a corrida eleitoral, foi substituído por uma calibragem fina de desvalorização do peso, num tênue equilíbrio para, de um lado, permitir a retomada do crescimento do país e, por outro, não fazer os preços ao consumidor dispararem.

Na prática, o valor do dólar o ficial e paralelo (845 pesos e 970 pesos, respectivamente), está praticamente congelado. O resultado é que o país, mergulhado numa profunda recessão e com a inflação ainda acima dos dois dígitos, ficou asfixiante para os argentinos e mais caro para os estrangeiros.

Alguns preços chegam a ser superiores aos do Brasil. Os brasileiros Leonardo e Amanda Araújo, que moram no interior de São Paulo, levaram um susto ao ver num supermercado de Buenos Aires que uma garrafa de dois litros de Coca-cola custa em torno de R$ 15, acima dos R$ 10 que pagam em Praia Grande, no litoral paulista.

— Achamos vários produtos mais caros, não esperávamos isso. Não existe mais vantagem econômica em vir para Buenos Aires, mas sim outras vantagens, como opções culturais gratuitas — contou Amanda, enquanto visita a famosa livraria El Ateneo, na Recoleta, ponto turístico de Buenos Aires.

Já para os americanos Donna e e David Miers, que moram em San Diego, na Califórnia, os preços portenhos ainda são atraentes. Em sua primeira noite na cidade, o casal gastou, com outras duas pessoas, US$ 200 num jantar em Porto Madero. Para um brasileiro, o preço é salgado. Para um americano ainda vale a pena.

— Comparado com os Estados Unidos, não achamos caro — disseram ambos.

Até o final de 2023, a Argentina tinha os preços mais baratos da região e altamente competitivos em relação ao resto do mundo. Com a chegada de Milei ao poder, o dólar deu um primeiro grande salto em dezembro passado — 118% em dezembro —, mas estacionou e praticamente não se mexe mais.

A principal explicação por trás desta decisão é a prioridade de combater a inflação e não ameaçar o alto índice de popularidade do chefe de Estado — que oscila entre 45% e 48%, mas, segundo algumas pesquisas, com uma taxa de desaprovação acima de 50%.

Se o dólar subir depressa demais, o peso perderá valor e os preços no mercado interno tendem a acelerar.

As pressões por uma desvalorização mais forte estão aumentando e partem de setores diversos, entre eles o Fundo Monetário Internacional (FMI), exportadores, economistas privados e produtores rurais. Se o peso se desvaloriza, fica mais fácil vender os produtos argentinos no exterior, o que pode ajudar na retomada do crescimento.

— Temos várias situações acontecendo ao mesmo tempo. O dólar está parado, os preços internos ainda altos e alguns reajustes superam 100% ou até 300%, por exemplo as tarifas de eletricidade e gás. A Argentina está numa profunda recessão, e perdendo competitividade — explica o consultor econômico Amilcar Collante.

Nos últimos dias, economistas renomados como Miguel Angel Broda e Roberto Cachanosky questionaram publicamente o chamado crawling peg, ou seja, uma desvalorização administrada e com flutuações leves do peso, já adotado por outros países da América Latina.

— Há um atraso cambial. Temos um problema com a cotação do peso. O governo deveria ver como todos os finais de semana os argentinos viajam para comprar coisas mais baratas no exterior — declarou o veterano Broda.

Para economistas como Andres Borenstein, da Econviews, o ideal seria uma desvalorização mensal em torno de 6% e 7%, mais próxima do índice mensal de inflação, ainda acima dos dois dígitos. Mas há poucos dias o ministro da Economia, Luis Caputo, afirmou que não haverá qualquer tipo de medida cambial até que o Banco Central recomponha suas reservas, ainda negativas.

Milei e Caputo querem baixar a inflação, mesmo cientes de que um dos efeitos colaterais de manter o dólar baixo é esfriar a economia e atrasar a recuperação. Estimativas de analistas privados apontam queda do PIB de até 4% este ano.

No feriado da Semana Santa, que na Argentina este ano durou seis dias, milhares de pessoas atravessaram a Cordilheira dos Andes para fazer compras no Chile. Esse movimento foi muito forte nos anos de 2017 e 2018, antes do final do governo de Mauricio Macri (2015-2019), mas se inverteu no governo do peronista Alberto Fernández (2019-2023), quando foram os vizinhos os que invadiram a Argentina em busca de pechinchas, entre eles os brasileiros.

Os argentinos que têm cruzam as fronteiras para irem às compras, mas a grande maioria da classe média não tem a menor condição de sair do país e, dentro da Argentina, o consumo está despencando. De acordo com dados da Confederação Argentina da Média Empresa (CAME), em março o consumo dos argentinos caiu 12,6% frente ao mês anterior, e 28,7% em relação ao mesmo período de 2023.

Em particular, os aposentados são os que mais sofrem. A socióloga Susana Said, de 76 anos, já cortou despesas em todas as frentes, inclusive na alimentação. Susana é paciente oncológica e entrou na Justiça contra seu plano de saúde para pedir uma redução da mensalidade. Desde dezembro, em média, os planos de saúde aumentaram 100%, o que levou o ministro da Economia a acusá-los de ter declarado “a guerra à classe média”.

— Sou classe média, tenho formação profissional, sempre tivemos uma vida boa, viajei muito, não posso me queixar. Hoje vendo dólares da poupança todos os meses para pagar minhas contas — disse a socióloga, que já fez as contas para estimar quanto tempo durarão as economias de sua vida se a situação não melhorar:

— Tenho para mais dois anos e isso me assusta muito. Comecei a trabalhar aos 17 anos, é tudo muito injusto. Meu condomínio aumentou 100% nos últimos 3 meses.

A curto prazo, o que mais a assusta é pensar no próximo inverno e em como fará para pagar as contas de gás. As tarifas públicas aumentaram entre 100% e 300% nos últimos meses e muitos argentinos deixaram de pagar as contas ou outras tarifas residenciais.

No início deste mês, Susana levou seu neto de 17 anos para comer uma pizza no centro de Buenos Aires. A ideia era que a avó fosse a convidada. Mas, quando a conta chegou, seu neto “ficou pálido”, lembrou Susana.

— Ele não tinha dinheiro suficiente. Hoje uma pizza com duas garrafas de refrigerante custa 20 mil pesos (R$ 101). Para nós, é caríssimo — lamentou a socióloga.

O governo Milei lançará este mês as notas de 10 mil e 20 mil pesos, em um sinal claro de que o alto custo de vida na Argentina chegou para ficar. Atualmente, a célula mais alta é de 2 mil pesos, e a mais frequente e de maior circulação é de mil pesos. Os caixas eletrônicos entregam, no máximo, 40 mil pesos de uma vez só, o que significa que, muitas vezes, os correntistas precisam fazer vários saques para obter o valor pretendido. Num país no qual o dinheiro em espécie ainda é muito usado, as filas são longas, e a espera também.

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