As previsões de enchentes no Sul e outros alertas da ciência ignorados pelos governos do mundo

Um time de renomados cientistas brasileiros foi reunido em um programa do governo federal com o objetivo de prever os impactos das mudanças climáticas no país. Os pesquisadores envolvidos na série de estudos “Brasil 2040” passaram dois anos, entre 2013 e 2015, colhendo e analisando dados para antecipar cenários e propor ações no sentido de ajudar o país a se preparar para a nova realidade.

O trabalho, encomendado pela extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, na época da gestão Dilma Rousseff (PT), gerou um conjunto de relatórios alertando para problemas que se tornariam recorrentes até o ano de 2040, como os prolongados períodos de seca no Norte do país. Para a Região Sul, o grupo previu que haveria uma maior incidência de chuvas extremas, como os temporais que causaram as enchentes trágicas no estado gaúcho.

Em 2015, porém, quando a equipe ainda elaborava medidas que poderiam ser tomadas para amenizar o impacto desses cenários, o projeto foi interrompido pelo próprio governo, em meio a uma troca no comando da SAE. Assim, a série de previsões não levou à formatação de políticas públicas baseadas em suas conclusões, o que era o objetivo principal de todo o programa, que custou R$ 3,5 milhões.

O cancelamento abrupto do “Brasil 2040” é mais um exemplo de alerta da ciência ignorado pelo poder público ao longo da história recente. Pesquisadores avisam há tempos sobre o que pode ocorrer com o planeta no caso de um aumento relevante da temperatura global. Para se ter uma ideia, em 1856, a cientista americana Eunice Foote concluiu que certos gases se aquecem quando expostos ao Sol e que a elevação de dióxido de carbono na atmosfera poderia alterar a temperatura do planeta.

Numa época em que mulheres enfrentavam ainda mais barreiras na ciência, a sociedade no século XIX não deu bola par os achados da pesquisadora. Três anos depois, o irlandês John Tyndall publicou estudos sobre o fenômeno que viria a ser chamado de efeito estufa e levou o crédito pela descoberta. Mesmo assim, em meio ao impulso da Revolução Industrial, a Humanidade com fome de produção e consumo nem parou pra pensar que poderia estar mesmo na direção de um verdadeiro caos climático.

Nos anos 1950, mais cientistas se debruçaram sobre o assunto. Em 1960, o climatologista Charles Keeling detectou que os índices de dióxido de carbono na atmosfera estavam subindo. Cinco anos depois, o relatório “Restoring the Quality of Our Environment”, produzido por um comitê de cientistas do governo americano, já alertava para o efeito dos gases gerados pela queima de combustíveis fósseis. Segundo o documento, o dióxido de carbono atuava na atmosfera “como o vidro em uma estufa”.

A preocupação levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a realizar, em 1972, a sua primeira Conferência para o Meio Ambiente, em Estocolmo, na Suécia. O encontro marcou o início de uma discussão que dura até hoje, sobre a responsabilidade dos países ricos, principais poluidores, diante da necessidade de reduzir emissões. Na ocasião, o então secretário-geral da ONU, o austríaco Kurt Waldhem, disse que a presença de mais de 1200 delegados de 120 países na conferência era a prova de que a Humanidade tinha depertado a tempo de evitar uma catástrofe.

Mas não foi isso o que aconteceu. De lá pra cá, um dos campos da ciência que mais se desenvolveu foi a pesquisa ligada ao clima, que vem produzindo um conjunto cada vez mais robusto de evidências mostrando o perigo da queima de combustíveis fósseis para a vida na Terra. Esses estudos motivaram conferências como a Rio-92, com a presença de chefes de Estado de diversos países, e à criação de órgãos como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Mas muito pouco foi realmente feito para mudar as bases de uma economia apoiada no petróleo.

Mesmo com a vigência do Acordo de Paris, aderido por 196 países no âmbito da ONU, e apesar de diversas consequências do aquecimento global já observadas em diferentes partes do mundo, como chuvas torrenciais, ondas de calor e derretimento dramático das calotas polares, as emissões de gases que contribuem para o efeito estufa continuam subindo ano após ano.

Essa é a realidade retratada, com bastante sátira, no filme “Não olhe pra cima” (2021), da Netflix, com Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence interpretando cientistas que descobrem um asteroide vindo na direção da Terra. O impacto aconteceria em seis meses. Eles fazem vários alertas, a Humanidade se mobiliza, mas nenhuma autoridade toma iniciativa para, de fato, evitar o fim iminente do mundo.

Em 2013, o governo da então presidente da República, Dilma Rousseff encomendou o “Brasil 2040” por meio da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). Os cientistas reunidos integravam centros de estudo como o Instituto Militar do Exército (IME), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a Universidade Federal do Ceará (UFC), entre outros. Eles mergulharam em modelos climatológicos para estimar como diversos setores da economia nacional seriam afetados dali até o ano de 2040.

“Foi um programa dentro da Presidência que envolveu uma série de ministérios e órgãos federais, com sete times reunindo pesquisadores de ponta em diversas áreas”, explicou, em uma publicação no Instagram, a especialista em políticas para o clima Natalie Unterstell, uma das coordenadoras do projeto e hoje presidente do think tank Instituto Talanoa. “O objetivo era gerar cenários climáticos e a partir disso pensar em propostas de política pública que nasceriam dentro da Presidência”.

Segundo Unterstell, o grupo rodou cenários baseados em quatro modelos climáticos, com diferentes projeções de aumento da temperatura. Em seguida, cada equipe analisou o que poderia ocorrer em setores da economia como o agro e o energético nas cinco regiões do país. Porém, em 2015, quando já tinha produzido diagnósticos e se encaminhava para sugerir ações de adaptação, o trabalho foi suspenso pelo governo, sem que o esforço levasse a políticas para amenizar os impactos previstos.

Em entrevistas ao podcast “Tempo Quente”, da Rádio Novelo, pesquisadores envolvidos no “Brasil 2040” deixam claro que o projeto foi cancelado porque, entre as diversas previsões, estimou a redução significativa da vazão de diferentes rios da Amazônia, o que prejudicava os planos do Palácio do Planalto na época de construir usinas hidrelétricas na região, a exemplo da usina de Belo Monte.

Só que os relatórios do grupo trouxeram uma série de outras previsões importantes. De acordo com o documento, a região Norte sofreria com secas severas e frequentes, como a estiagem observada no segundo semestre do ano passado, que causou sérios transtornos ambientais e sociais na Amazônia.

Nos últimos dias, o programa “Brasil 2040” voltou ao noticiário em meio às graves enchentes que deixaram dezenas de mortos e mais de 300 mil desalojados na Bacia do Guaíba, onde está situada a capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Antes de ser interrompido, o trabalho previu que os estados do Sul do país viveriam uma frequência maior de chuvas extremas. Infelizmente, o grupo de cientistas não teve tempo de sugerir medidas preventivas para amenizar os impactos desses eventos.

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